quarta-feira, 5 de maio de 2010

Entrevista de Kisho Kurokawa


Convidado para o Seminário Internacional do Docomomo realizado em Brasília, no final de setembro de 2000, Kisho Kurokawa expôs suas críticas aos resultados do urbanismo moderno e apresentou a proposta das "EcoMedia cities", como seu projeto para Astana, a nova capital do Casaquistão. Nesta entrevista, concedida no Hotel Nacional, em Brasilia, Kurokawa fala de seu processo de trabalho, explica a sua "Filosofia da Simbiose" e analisa os reflexos da globalização econômica na arquitetura de seu país.
Veja também o site de Kisho Kurokawa
www.kisho.co.jp. O sr. ficou muito conhecido depois da fundação do Grupo Metabolista e da construção de suas casas e edifícios formados por cápsulas nos anos 60 e 70. Trinta anos depois, seus conceitos para a arquitetura e a vida avançaram para a Filosofia da Simbiose. Poderia explicar o significado de metabolismo e simbiose?


A idéia de simbiose é mais antiga, as raízes dessa idéia se fixaram quando eu ainda fazia o curso médio em minha cidade natal, Nagoya, numa escola muito especial, fundada há 110 anos. Antigamente esta escola era exclusiva para a formação de monges budistas, agora é uma escola aberta, embora seu diretor seja ainda hoje um filósofo budista. E durante aqueles anos eu absorvi idéias sobre a coexistência de contrários. Evidentemente, naquela idade eu não tinha uma visão muito clara do que era a filosofia. Antes de decidir pela carreira de arquiteto, me interessei pela Biologia e num dos livros que li, encontrei o conceito de simbiose, que em síntese, significa a interdependência de dois seres vivos, cada um tirando partido de alguma característica do outro.

Depois que me formei, já na Universidade de Tóquio, em 1958, fiz a minha primeira viagem ao exterior, passando pela Europa, União Soviética e América. Então, exatamente quando o movimento dos CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) estava acabando, eu começava minha carreira na Arquitetura. Foi um início dramático, em meio a uma situação caótica. Então, quando de fato comecei a trabalhar, em 1959, eu e meus colegas nos perguntávamos: "O que há de novo depois do colapso do CIAM?" Saíamos da era da máquina, como ditava o movimento moderno, para algo ainda difuso. E, de repente, um dia, tive uma antevisão, que daquele momento até o século 21 uma nova era estava surgindo... e resolvi chamá-la de era da vida. E, em 1960, fundamos o Grupo Metabolista.


É fácil perceber simbiose olhando as imagens do Museu de Arte Contemporânea em Wakayama, porque ele está localizado em um sítio histórico, ao lado do Castelo de Wakayama. Já não é tão fácil compreender a simbiose no Aeroporto de Kuala Lumpur, apesar de algumas referências à cultura islâmica. Mas é muito difícil entender onde está a simbiose num projeto como o do anexo do Museu Van Gogh, em Amsterdã. Como ler cada um desses projetos?

O anexo do Museu Van Gogh, em Amsterdã, é o resultado da simbiose entre a cultura européia e a cultura japonesa. E que cultura européia naquele lugar? Justamente a da geometria, porque o prédio principal do museu foi desenhado por Gerrit Rietveld, um dos fundadores da arquitetura contemporânea holandesa. E uma das principais características de sua arquitetura é a composição geométrica, que ele trouxe da pintura de Mondrian. Talvez sua obra mais conhecida seja a casa "Schröder", em Utrecht, que é quase uma tela de Mondrian colocada em 3 dimensões.

Então, ao projetar o anexo, eu também procurei partir da geometria, mas usei curvas e elipses que foram rotacionadas para gerar uma assimetria no volume principal, visível especialmente na cobertura. E aí está a tradição japonesa, na assimetria (hitaisho), que vem de milhares de anos. Nós não fazemos arquitetura simétrica. É importante lembrar que o novo edifício está abrigando o acervo de pinturas japonesas ukiyoe que Van Gogh colecionou e que exerceu grande influência em seu trabalho. No projeto do museu Van Gogh procurei trabalhar também em simbiose com o sítio, que é um parque muito importante na cidade de Amsterdã. Então, apenas 25% da área construída são visíveis externamente. A maior parte do prédio é subterrânea e a ligação entre os dois edifícios é feita abaixo do nível do solo, por meio de um jardim de águas, que se reporta aos jardins tradicionais do Japão. Logo ao entrar no anexo, a primeira coisa que os visitantes vêem é a água, também um elemento muito importante para a cultura da Holanda.

O importante nessa relação simbiótica é a criação desse espaço intermediário (em japonês se diz Ma), de ligação, que transita de uma cultura para outra. A beleza do canto, na música tradicional japonesa, se localiza exatamente nesse intervalo de transição de um som para o outro. É um lugar de ligação entre diferentes, entre corpo e espírito, entre sim e não, um espaço virtual ou físico onde as pessoas podem mudar sua sensibilidade em relação ao mundo. Então o anexo do Museu Van Gogh não é uma cópia da arquitetura japonesa, mas o espírito japonês está lá presente e pode ser sentido por todos que o visitem.

SINTAXE DA ARQUITETURA E em relação ao Museu de Wakayama?

Para explicar, vou fazer uma analogia com a escrita. Nós temos as letras fonéticas ocidentais, a,b,c,d etc. E uma letra só tem sentido se combinada com outras para gerar palavras e significados. Por outro lado, temos as letras chinesas, que são ideogramas. Por exemplo, meu nome Kurokawa....o ideograma kawa vem da representação de um rio, das linhas que representam a água correndo. Não é um signo fonético, é um símbolo. O ideograma chinês Opá, que significa pássaro, deriva do desenho de um pássaro. Então, uma letra chinesa sozinha tem um sentido completo... Na cultura européia clássica pode-se usar elementos geométricos (cones, cubos, esferas, prismas) como fonemas que compõem um discurso, um eixo urbano, por exemplo.

Na cultura japonesa, o mesmo conjunto de volumes seria disposto de forma assimétrica para formar outro discurso, contemporâneo, mas baseado na tradição. É um simbolismo abstrato criado com formas, texturas e cores. Mas há um outro tipo de simbolismo, que toma como referência a forma de um objeto, da mesma maneira que o ideograma Opá lembra a forma do pássaro que ele quer representar. No caso do Museu de Wakayama, a obra "dialoga" com o castelo tradicional ao tomar certas formas, como a dos telhados: invertemos os telhados, criamos algumas asas de alumínio que lembram suas formas. E quem olha para o museu sabe que se trata de uma obra japonesa. Então, eu tenho duas formas de trabalhar com o simbolismo abstrato: uma utiliza os elementos geométricos comuns a todas as culturas, formando uma linguagem arquitetônica. Uma simbiose entre o passado e o futuro. Como a pirâmide de vidro colocada por Pey em frente ao Louvre. Em Paris, um outro exemplo interessante é o Grand Arche (La Defénse). Sua forma é muito simples, remete ao clássico Arco do Triunfo, mas não é uma cópia, é um símbolo abstrato. O Museu de Wakayama resulta da simbiose entre a História e o Contemporâneo pela abstração da forma. No caso do Anexo do Museu Van Gogh, ocorre a simbiose entre duas culturas, graças à justaposição e movimentação de forma geométricas simples, que fazem parte da linguagem arquitetônica clássica.

MOVIMENTO MODERNO Em seu livro mais recente, "Each One a Hero", o sr. faz uma crítica negativa ao modelo de urbanismo preconizado pelo CIAM e concretizado em Brasília, Chandigard (Índia) e em algumas intervenções realizadas em espaços urbanos de vários países ao longo do século 20. Parece-me que o sr. considera a proposta da arquitetura e do urbanismo moderno demasiadamente racional, permitindo apenas uma "leitura" e, de alguma forma impedindo o devaneio humano... Uma obra como a Catedral de Brasília não permite essa leitura múltipla, comum às verdadeiras obras de arte?

No centro do Movimento Moderno está (Walter) Gropius, que trabalhava com muita rigidez na Bauhaus. E as idéias de Le Corbusier, incluindo o conceito urbano do "dominó" nasceram também no centro do Modernismo. Mas Corbusier, que viajou pelo mundo, conheceu arquiteturas e arquitetos de várias partes do mundo, estendeu o conceito do Movimento Moderno para bem além disso: a igreja de Rochanp é um ótimo exemplo de um expressionismo que se afasta da ortodoxia do modernismo. Corbusier avançou para a periferia do Movimento Moderno, onde estão nomes como Oscar Niemeyer e Alvar Aalto. Acho que Niemeyer conseguiu realizar uma simbiose entre o International Style e o Barroco brasileiro. Alvar Aaalto já começou a trabalhar nessa periferia do Modernismo e aí se manteve.

Vamos falar sobre sua forma de trabalhar. Como o sr. inicia um novo projeto? Os primeiros passos são feitos com computadores, com lápis, ou "na cabeça"?

É muito simples. Primeiro eu procuro ouvir o cliente e esta é a etapa mais importante. Gasto a maior parte do meu tempo de trabalho conversando com o cliente, tomando notas e procurando entender exatamente o que ele necessita, qual é sua cultura arquitetônica, que imagens ele deseja encontrar no projeto. A partir daí, passo a desenhar, faço esboços, centenas de esboços até amadurecer as idéias que vão surgindo.

Mas a maior parte do trabalho eu realizo em minha cabeça, durante cerca de um dois meses. Durante esse tempo, todos os dias eu "caminho" através dessa arquitetura que está surgindo e vou mudando a localização das janelas, das escadas, experimento vários materiais, enfim vivencio aquela arquitetura que estou fazendo. Vou imaginando todos os detalhes da obra, na verdade procuro construir as estruturas em minha cabeça antes de começar a desenhá-las. Quando eu noto que o projeto está bem resolvido, que é possível construí-lo sem dificuldades, faço uma apresentação das idéias para a minha equipe. Nessa etapa é possível checar a consistência das soluções que desenvolvi. Assim que tudo estiver claro, passamos a detalhar o projeto nos computadores e especificar os materiais.

Esse processo mental serve até mesmo para uma obra complexa, como um aeroporto?

Sim. No aeroporto de Kuala Lumpur, na Malásia, a partir das discussões com o cliente, eu decidira fazer uma cobertura abobadada que tivesse referências nas construções islâmicas. Imaginando a estrutura, notei que usar pilares cilíndricos traria sérias complicações construtivas para o travamento da estrutura. Então, imaginei um pilar em tronco cônico, capaz de absorver melhor os esforços horizontais da cobertura. Quase simultanemente notei que aquele formato funcionaria bem para a condução do ar refrigerado desde o subsolo, onde estariam as máquinas, até o último pavimento, o de embarque.

Falando sobre urbanismo, sua proposta para as cidades do século 21 sugere uma diluição das fronteiras entre rural e urbano através da construção de novos centros capazes de receber as mais novas tecnologias de informação, construção, transporte, comunicação, conservação de água e energia, paisagismo e engenharia florestal. Essas "EcoMedia cities" são realmente viáveis?

A EcoMedia City pode ser entendida como uma NetWork city, na qual todas as atividades estarão acontecendo de forma orgânica, numa simbiose entre os processos industriais e naturais. Nessas cidades que concebi há uma grande disponibilidade de florestas naturais ou plantadas, para garantir a qualidade do ambiente urbano, há um aproveitamento dos resíduos para reciclagem ou produção de combustíveis, bem como a aplicação de modernas técnicas para conservação e reciclagem de água, conservação e autogeração de energia.

Para tudo isso funcionar adequadamente, é necessária uma rede de dados que permita a troca de Informação, uma rede sem fios, que evite as interferências do cabeamento em postes ou no subsolo das cidades. A primeira delas foi projetada para a região entre Kuala Lumpur e o novo aeroporto, em meio a uma floresta tropical e entre dois corredores de transporte, com trens de alta velocidade. O objetivo é receber ali as empresas de alta tecnologia, na área de computação e também na indústria de biotecnologia, para aproveitar a biodiversidade oferecida pela floresta naquela região.

A partir dessa proposta, desenvolvi o projeto Amagasaki para a prefeitura de Hyogo, no Japão. Trata-se da revitalização da costa marítima da cidade, com a construção de 2000 unidades residenciais, um museu ecológico, centro de compras, hotel e museu de arte, com um parque linear cruzando toda a área de 56 hectares. Esta cidade experimental vai funcionar com água captada da chuva, energia solar e energia do lixo. Agora estou trabalhando no projeto de Astana, a nova capital do Casaquistão, que também será baseada nos mesmo conceitos.

CIDADES MUNDIAIS Como o sr. sabe, o ambiente urbano está gravemente enfermo em cidades como São Paulo, México, Jacarta, Bombaim e várias outras metrópoles de países pobres. O sr. acredita na possibilidade de rehabilitação desses lugares a partir de uma abordagem ecológica, como a proposta da Eco Media City?

Cada caso exige um estudo específico. Neste momento, estou tentando desenvolver o conceito de EcoMedia City em Tóquio, que também é uma metrópole cheia de problemas. Desenhei dois canais num lugar onde há 400 anos haviam inúmeros canais que foram sendo gradativamente aterrados. Sobre esses aterros nasceram novos bairros da cidade. Minha idéia é repensar a relação simbiótica entre a água e a cidade, recriando o canal, que daria nova dinâmica ao lugar, criando uma agradável parque de convivência entre as pessoas e a água, com barcaças e barcos de transporte coletivo. É uma área muito valorizada, de forma que seria impossível ao governo desapropriá-la para se fazer um canal.

Assim, criaríamos uma ilha artificial no centro da Baía de Tóquio, utilizando resíduos de demolição, permitindo a criação de bairros novos, com mais espaço, um parque, e uma linha de metrô ligando a nova área ao centro da cidade. Imaginei que o proprietário de um terreno de 100 m2 desapropriado para a construção do canal, pudesse receber como compensação uma área de 300 m2 na nova ilha. O mais interessante é que esse novo canal permitiria que a água do mar circulasse mais velozmente pela Baía, purificando suas águas, hoje muito poluídas.

Outro dado importante: o canal seria um recurso eficiente de combate aos incêndios, especialmente quando ocorrem terremotos. Tóquio já sofreu três grandes incêndios e o maior deles consumiu em perto de 20% da cidade. Desta forma, mesmo cidades como México City ou São Paulo podem ter seus problemas equacionados. Mas é necessário pensar a longo prazo, planejar para cem anos. Parece muito tempo, mas lembre-se do que era São Paulo há cem anos...

Falando da arquitetura japonesa...Existe ainda uma arquitetura de tradição japonesa ou o processo de globalização está apagando essas marcas culturais nas novas obras construídas?

Sim, estamos enfrentando esse problema. Mas lembro que quando começamos a Era Meiji, que foi uma fase de modernização, tudo mudou, inclusive a arquitetura, A Era Meiji foi o momento em que os japoneses se voltaram para a Europa e a arquitetura feita naquele período significou uma cópia das obras européias. Mas a essência da cultura não se perdeu naquele momento. Você pode ver e identificar a pintura japonesa, o paisagismo, a técnica de jardinagem, o artesanato etc. Mas a maior parte da tradição japonesa é invisível: é o pensamento, a leitura, a filosofia, a estética, a forma de comunicação entre as pessoas.

Veja, a cidade de Tóquio foi inteiramente destruída por bombardeios na 2a Guerra Mundial. Era possível as montanhas e cinco ou seis edifícios de concreto, que resistiram. Nada mais. Tóquio foi reconstruída com materiais modenos, concreto, aço, vidro e então alguém pode dizer que a cidade parece Los Angeles, ou Chicago, mas se esta pessoa ficar por alguns anos na cidade, vai entender que Tóquio é uma cidade japonesa, uma cidade tradicional japonesa. Na aparência a cidade é global, mas o modo de vida é completamente diferente do de Londres, Paris, ou qualquer outra cidade do mundo. Nós trabalhamos para concretizar a simbiose entre os padrões internacionais e as culturas locais. Acredito que a missão dos arquitetos seja a de realizar a arquitetura contemporânea por meio dessa conversa entre as identidades locais, as tendências globais e a História.

E qual é o status da arquitetura no Japão de hoje?

Como em qualquer outro lugar do mundo, 95% de tudo o que se constrói no Japão está orientado para o Business, não para a Arte. São raras as obras projetadas por arquitetos como Toio Ito, Isozaki, Tadao Ando, profissionais que como eu se preocupam com a Cultura. As grandes construtoras, Takenaka, Kajima...têm seus próprios corpos de arquitetos, que realizam obras de qualidade, mas voltadas para os interesses exclusivos do mercado, não para a fruição da sociedade. Infelizmente, o interesse pela arquitetura ainda é muito restrito.

Texto integral da entrevista concedida a Marcos de Sousa
(Uma versão resumida foi publicada em PROJETO DESIGN Edição 249 - Novembro 2000

Fonte: http://www.arquitectura.pt/forum/f29/kisho-kurokawa-1934-2007-a-8233.html

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